quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Irlanda: 2 - Os Irlandeses



É verdade que as paisagens da recortada costa oeste são de cortar a respiração, que o verde se impõe por todo o lado e esmaga quase tudo o que a vista alcança, que os castelos são lindíssimos e muito bem recuperados, que nos espantamos pela variedade e profusão dos vestígios arqueológicos de várias eras, que as velhas igrejas e abadias em ruínas no meio do campo são uma imagem incrivelmente romântica, tudo verdade, mas o melhor da Irlanda são mesmo os irlandeses!
Nós portugueses sabemos do que se trata quando falamos de um povo simpático e acolhedor. Fazemos também gala disso e essa é uma das nossas tradicionais virtudes. E não digo que os irlandeses sejam mais simpáticos mas expressam essa simpatia numa alegria contagiante, servida por um humor muito próprio, carregado de ironia, sendo tudo isso alicerçado numa forte tradição rítmica que nos põe todos a cantar e a dançar. Só visto!

Eles não se calam
É difícil ficar indiferente aos irlandeses. A primeira coisa que notamos é que eles falam pelos cotovelos, contam histórias atrás de histórias que temos por vezes dificuldade em acompanhar por causa do sotaque cerrado e riem muito, a maior parte das vezes deles próprios. Na nossa primeira saída após Dublin, fizemos aquilo que pensámos ser uma pequena paragem num cerâmica perto de Kilkenny, uma pequena e amorosa cidade onde ficámos duas noites. A oficina estava parada, o dono de férias mas a loja tinha duas senhoras que nos atenderam. Em vez de 10 minutos ficámos por lá cerca de duas horas! Como em todo o lado começaram por nos perguntar de onde somos. Revelada a nossa origem, os sorrisos rasgam-se, a boca solta-se. Sim, eu já estive (ou uma prima, ou uma tia, uma amiga, as variações podem ser muitas) em Portugal, no Algarve, lovelly, nice people, etc. E então o que estão aqui a fazer? Férias? Vieram para o chuva e para o frio? Bem para nós este tempo está óptimo, mas calculo que para vocês não seja agradável, isn't it? Querem saber a história da Pottery? Ao fim das duas horas sentimo-nos na obrigação de comprar um pratinho pintado que nos custou os olhos da cara, não sem antes tirarmos uma foto de conjunto com as sorridentes e simpáticas senhoras.

Isto provou-nos que não é preciso apanhar um irlandês de copo na mão num bar para lhe desvendar a alma. Ela revela-se a todo o instante. Exemplo disso são os motoristas dos autocarros turísticos de Dublin. Como aqui estávamos ainda sem carro, optámos por comprar aqueles passes hop on hop off de dois dias que nos permitem entrar e sair das atracções e retomar a viagem quando desejássemos. Conhecemos por isso uma boa meia dúzia de motoristas, qual deles o mais original. Na maior parte das vezes a voz off gravada do guia turistico é substituída pelas explicações dos condutores na hora. Desengane-se quem pense que se limitam a apontar à vossa esquerda o Trinity College, à vossa direita a famosa estátua da Molly Malone. A um bastou a evocação da Molly Malone para ouvirmos, em várias versões, as suas histórias, algumas delas com o inevitável toque brejeiro e depois a própria canção cantada a plenos pulmões enquanto conduzia pelas apertadas ruas da cidade perante o olhar primeiro atónito mas depois divertido dos turistas. Outro ao passar pelas colunas do icónico edifício GPO (leia-se General Post Office), onde se desenrolaram alguns dos episódios mais sangrentos da ultima grande revolta contra o domínio britânico em 1916, comentava assim: «vejam como cada um faz a sua revolução! Os franceses tomaram a Bastilha, os soviéticos o Palácio de Inverno, nós, os irlandeses, assaltamos a estação dos correios!Baahh!»


Mas se quer conhecer um irlandês no seu habitat, vá vê-los aos pubs. Não aos pubs turísticos de Temple Bar que sendo imperdíveis pelo espectáculo e pelo ambiente, são sobretudo produções para visitante ver. Falo dos pubs das pequenas cidades, cheios de locais, homens e mulheres em partes iguais, que vestem a camisola do clube da terra numa manifestação que julguei erradamente de adeptos de futebol. Futebol?, atirou-me um, olhando por cima da sua pint, quando quis saber qual o clube. Isso é para meninas, sempre no chão com dores e muitos ais. O jogo ali era o hurling, o instrumento com que se joga é uma espécie de stick cujo efeito nem quero imaginar o que fará quando bate na cabeça de um e de que eu desconhecia em absoluto, safando-me desta vez o google para poder continuar a conversa animada. A verdade é que nestes pubs populares é difícil conversar, primeiro porque o barulho é ensurdecedor depois porque o sotaque é muitas vezes cerrado e quase impenetrável. Mas vale bem a pena o esforço porque o divertimento é garantido. E é neste ambiente caótico que às tantas um tipo lá do fundo puxa da viola e se põe a cantar. Aqui ninguém manda calar que se vai cantar mas à primeira estrofe, sem qualquer transição, dezenas de vozes começam a acompanhar a canção de tal forma que o coro parece ter sido previamente afinado. Dá vontade de ali ficar a noite toda.

A simpatia, a disponibilidade para responder a dúvidas, a dar orientações e conselhos de viagem é geral e transversal a géneros e idades por toda a Irlanda. Seja no acolhimento dos Bed and Breakfast (B&B para os entendidos) numa loja, numa bilheteira de uma atracção, em  qualquer lado, esbanja-se cordialidade e empatia que vai para além do simples profissionalismo. Como foi o caso, absolutamente devastador para a nossa auto-estima, quando nos informaram que poderíamos usufruir dos bilhetes de sénior na entrada de um museu por já termos 60 anos feitos! Oh my God! Really? Habituados em Portugal a empurrarem-nos a idade da reforma sempre para a frente, experimentámos um sentimento indizível com a revelação que podemos ser terceira idade na Irlanda! Passado o choque inicial, já não quisemos outra coisa. Daí para a frente, foi sempre sénior para tudo, mesmo quando o limite afixado era superior: desculpe, consideram sénior a partir de que idade?, passou a ser a pergunta obrigatória. É aos 65, responderam algumas vezes mas se tiver 60 também estamos a deixar entrar.  E não é que  ninguém alguma vez me pediu o BI? No final devemos ter poupado uma largas dezenas de euros.
(a continuar)

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