sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Real Companhia, Velha só de nome


Celebrar 260 anos com um Porto monumental!

Tive recentemente a oportunidade e o privilégio de assistir às comemorações dos 260 anos da Real Companhia Velha. Foi uma jornada inesquecível que se desenrolou por dois dias e permitiu perceber que não há passado que valha se ele não souber projectar-se no futuro. Por tudo o que vi e, sobretudo pelo que provei, é fácil constatar que os caminhos seguidos pela equipa de Pedro Silva Reis e com a direcção enológica de Jorge Moreira, são muito sólidos e consistentes.

O programa começou com a comemoração histórica dos 260 anos da Companhia. Nas caves de Gaia, por entre pipas centenárias, e com figurantes vestidos a rigor, evocou-se o século XVIII e aquele ano fundador de 1756 em que por alvará régio, a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro foi fundada, correspondendo às solicitações expressas de um conjunto de lavradores e homens bons do Porto. Para quem gosta de história e do vinho do Porto, é sempre emocionante poder confrontar-nos com os documentos originais expostos na sala da Administração da RCV e que fazem parte da nossa identidade.


Mas é claro que a uma Casa de vinhos comemora com vinhos. E a RCV foi desencantar ao baú da memória e às pipas da história um vinho verdadeiramente avassalador. Chamou-lhe Carvalhas Memories, vestiu-o com a dignidade requerida num garrafa de cristal Atlantis e num estojo em madeira Pau Rosa do Brasil e apresentou-o como um objecto de luxo. Este Porto remonta à vindima de 1867, na Quinta das Carvalhas, ali em frente do Pinhão. Na época já era uma quinta de referência, pela sua extensão e qualidade das uvas produzidas, propriedade da firma Miguel de Sousa Guedes que já em meados do século passado se incorporou no património da RCV e é hoje a sua principal jóia da coroa. Fiel à política da Casa, os vinhos tawnies velhos não são regularmente refrescados e conservam-se nos velhos tonéis tal e qual estão. No caso deste, só no engarrafamento final foi ligeiramente refrescado com uma pequena quantidade da colheita de 1900, tendo em vista proporcionar-lhe um pouco mais de vigor e frescura.

Jorge Moreira teve então oportunidade de explicar o contexto deste Porto histórico com 149 anos de idade. Explicou que o crescente interesse pelos tawnies que hoje assistimos nem sempre foi evidente e que ainda nos últimos anos do século XX eles eram relativamente pouco valorizados. As firmas inglesas sempre puxaram mais para o estilo vintage e por isso a atenção mediática dos críticos e da imprensa em geral estava focada nos vinhos que envelheciam nas garrafas. Felizmente que isso hoje mudou radicalmente e todos reconhecem que a lenta oxidação nos pipos de madeira velha confere aos vinhos fortificados um conjunto de propriedades únicas que transforma estes vinhos em algo de sublime e por sinal, até bem mais adaptados ao acompanhamento da maioria das sobremesas dos portugueses. Não é o caso deste Carvalhas Memories 1867 que não precisa de sobremesa nenhuma para expressar a sua essência. Desenganem-se aqueles que esperavam encontrar aqui um vinho xaroposo, pesado e enjoativo. Essa é a sua maior surpresa. Aqueles atributos que Jorge Moreira defende que caracterizam um grande vinho, estão ali: um equilíbrio admirável e sempre dinâmico entre a intensidade, potência e elegância. Impressiona sobretudo, num vinho tão velho, a extraordinária frescura que ele mantém e mesmo quando foi provado com outros tawnies de idade - 10, 20 e mais de 40 anos - percebe-se a concentração ímpar de aromas complexos mas descobre-se uma leveza que chega a ser inquietante. Enfim, esta foi mesmo uma prova para a história.

As pontes entre o passado e o presente


A comemoração da história da RCV continuou no jantar que se seguiu à prova. Aos aperitivos - excelente marisco com ostras saborosas e percebes gigantes de intenso sabor a mar - provou-se o Espumante RCV Pinot Noir-Chardonnay 2013 que uns dias antes já tinha justamente impressionado favoravelmente os jurados do Concurso Escolha da Imprensa. E não podia ter começado melhor este jantar quando acompanhando um foie gras (apenas regular) foram generosamente servidas nada menos que algumas das ultimas garrafas do Grandjó Colheita Tardia 1925. Este vinho é um monumento e deveria ser classificado património histórico. Oriundo da Quinta da Granja, nos planaltos de Alijó (o nome Grandjó vem da aglutinação destes dois nomes), é um branco de colheita tardia, não fortificado, feito a partir da mesma casta francesa Semillon que quando atacada pela chamada podridão nobre dá origem aos célebres Sauternes, em Bordéus. Mas senhores, este vinho tem 91 anos!!! A cor de tijolo com reflexos dourados que evidencia no copo deixa antever ao que vamos. Mas é quando lhe pomos o nariz em cima que uma explosão de aromas se deflagra e ficamos anestesiados, tal é complexidade e os sucessivos matizes que vão e vêm numa espiral que parece não ter fim. Na boca as surpresas continuam. Ora nos parece algo seco, ora nos deliciamos com o notável equilíbrio entre a acidez e a doçura e com um final interminável. Há momentos em que as palavras nos faltam para descrever certas emoções.

A lógica do restante serviço de vinhos no jantar foi curiosa. Segundo explicou Jorge Moreira, a ideia era apresentar algumas das mais recentes novidades entre os topos de gama do Douro a RCV mas mostrando como eles se inseriam numa lógica de continuidade e consistência. Assim, apresentou um vinho antigo que "inspirou" cada uma das novidades. Percebeu-se assim que o Carvalhas branco 2014, é um digno sucessor do Porca de Murça Reserva 1998, o primeiro branco a ser fermentado em madeira, tal como o Carvalhas Vinhas Velhas 2011 (uma criança ainda com muito para andar) se inseria na linha dos Evel Grande Escolha 1996 ou o Granton 1958. Didática e interessante, a experiência. No final, à sobremesa, um grande Porto Vintage 1931 encerrou o jantar com chave de ouro.




Quinta do Síbio: o futuro é ali.

Se a véspera foi mais dedicada à comemoração do passado, o dia seguinte do nosso tour esteve inteiramente dedicado ao presente e a percepcionar os caminhos do futuro da Companhia que sendo velha de nome tem a vitalidade e a irreverência dos jovens. O nosso destino foi o Douro, mais precisamente o vale do Roncão, onde se situa a Quinta do Síbio que visitámos e cujos novos vinhos provámos depois já nas Carvalhas. Até recentemente a Quinta do Síbio não tinha atraído as atenções mediáticas. Não porque os seus pergaminhos não fossem suficientemente vetustos, já que se trata de uma das mais antigas e tradicionais propriedades da RCV (adquirida em 1934!). Mas simplesmente porque a mesma esteve praticamente abandonada durante vários anos e só nos últimos anos sofreu um ambicioso plano de recuperação dos seus patamares e socalcos que obrigaram a um demorado e dispendioso trabalho de reconstrução dos tradicionais muros de xisto e depois a uma replantação das vinhas. Jorge Moreira viu nesta propriedade grandes potencialidades para fazer vinhos do Douro diferentes e entusiasmou com isso a equipa de viticultura e enologia. Uma das ideias é a recuperação de antigas castas esquecidas do Douro, como as brancas Códega, Esgana Cão ou Sercial, Pêro do Bode, Síria, Samarrinho e Touriga Branca ou Cornifesto, Bastardo, e Tourigas Fêmeas, nas tintas. Os 100 hectares agora com vinha dão para fazer ensaios e experiências com estas raridades mas também para produzir vinhos de castas nobres como a Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinto Cão, Tinta Amarela, Sousão e Tinta Francisca, plantadas em talhões estremes segundo as orientações das novas correntes da viticultura. Importante também são as parcelas com vinha em produção biológica que já se materializam em vinhos ali produzidos, como iremos ver.


As novas experiências, os novos vinhos

Foram quatro os novos vinhos da Quinta do Síbio que tivémos oportunidade de provar tendo em frente o cenário magnífico do Douro, visto do alto da Quinta das Carvalhas. Quinta do Síbio Field Blend branco 2015, produzido de uma parcela de vinhas velhas mas em que o Viosinho é dominante, foi totalmente fermentado e estagiado em inox. Está ainda relativamente fechado no aroma com predomínio de notas vegetais e algum floral. Na boca está mais interessante com bom equilíbrio e excelente acidez que lhe empresta uma frescura cativante.

O Quinta do Síbio Samarrinho branco 2015 foi mais surpreendente. Primeiro porque é o primeiro vinho inteiramente produzido desta casta, em quantidades diminutas, apenas 800 garrafas. Depois porque o vinho revela já uma boa intensidade aromática com notas florais muito bem conseguidas e algum mineral. Na boca é fresco, reforça a sensação mineral conjugando com uma boa estrutura. Uma casta e um vinho a seguir com atenção em futuras edições.

O vinho seguinte foi outro branco e não menos intrigante. Começa no nome - Abanico branco 2015. Desta vez a designação provém do nome da parcela, já que a casta, uma variedade de Moscatel sugerida em tempos pelo famoso técnico australiano Richard Smart não está regulamentada no Douro. O vinho é também estagiado em inox e apresenta uma grande exuberância aromática com muitas notas florais e frutadas. No palato apresenta-se com surpresa muito seco e boa acidez. Foi dito que tem um grande potencial de guarda, coisa que só o tempo poderá confirmar.

Foi já no longo almoço de encerramento da jornada que tivemos oportunidade de provar o Síbio tinto 2014, o topo de gama dos vinhos desta quinta e com preço a condizer (cerca de 50€). É um vinho feito a partir de vinhas de produção biológica das castas Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Francisca e Sousão. A fermentação é feita em partes iguais em lagares tradicionais de granito e de inox e tem 12 mesas de estágio em barricas novas de carvalho francês. O vinho é muito novo, está ainda muito cru mas devo dizer que impressionou bastante. É concentrado, poderoso mas ao mesmo tempo elegante com fruta madura de muito boa qualidade e de grande complexidade. Vai ser curioso ver a sua evolução nos próximos anos.

Devo dizer, para concluir, que fiquei com uma ideia diferente da que tinha da RCV, antes desta viagem. À imagem tradicional de uma vestuta casa de vinhos de Porto, sobressai agora uma empresa que sem renegar o seu passado e alicerçando-se nele, experimenta caminhos, ensaia experiências e ousa inovar. Afinal, Velha, é só o nome e os seus pergaminhos.

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