São vinhos, comidas e conversas, muitas conversas. A mesa é um local de partilhas, assim como este blog pessoal. Nota: As fotografias utilizadas neste blogue são na maior parte dos casos retiradas da internet. Se acaso alguma estiver protegida por direitos de autor, agradece-se que tal seja comunicado, a fim de ser retirada de imediato.
sexta-feira, 26 de agosto de 2016
Irlanda: 3 - Dublin
Visitar Dublin neste principio de Agosto reconciliou-me com... Lisboa! É verdade! Para quem se mostra impaciente e vocifera contra obras e contra aquilo que considera turistas em excesso, deveria vir a Dublin. A cidade está um autêntico estaleiro, todo o centro histórico com ruas inteiras rasgadas ao meio, deixando uma estreita faixa para circulação onde dezenas ou centenas de autocarros turísticos (para além dos automóveis e táxis) fazem autênticos malabarismos dignos de circo. Imagine-se, assim de repente, toda a baixa lisboeta esventrada e condicionada e pode ter-se uma ideia da dimensão da coisa. Salvam-se as poucas ruas sem circulação automóvel e que são um oásis no meio do barulho e do pó. A razão de ser destas obras é a extensão da rede do metro de superfície, ao que dizem absolutamente necessária para uma das poucas capitais europeias que não dispõe de um metro subterrâneo. Seja!
Passado o desabafo, o que posso dizer sobre Dublin, onde passei quatro dias bem preenchidos? Não é uma cidade-museu que impressione pelo conjunto da sua beleza arquitectónica mas a verdade é que dispõe de um número muito apreciável de atracções, posicionadas relativamente perto entre si o que torna agradável e proveitosa uma visita de alguns dias. É sobretudo uma cidade com muita vida, vibrante, animada e fácil de percorrer. É fácil orientar-nos nela, tendo como referência o rio Liffey que divide Dublin ao meio com muitas pontes, algumas só pedonais, a unirem a duas margens. A parte nova da cidade, a mais comercial e com a maior parte dos hotéis fica no lado norte, sendo que os pontos turísticos mais visitados estão na margem sul.
Entre eles está inevitavelmente o Trinity College e a exposição do Book of Kells que atraem dezenas milhares de vistantes por dia. Uma romaria! Estamos a falar de um grande campus universitário, à boa maneira das universidades anglo-saxonicas, que juntam no mesmo espaço as várias faculdades, bibliotecas, serviços de apoio, residencias para estudantes e professores, capela, etc. No Trinity, fundado no final do século XVI, as visitas guiadas (exteriores) são feitas por estudantes-guias (que assim conseguem amealhar mais um cobres para custear o pesado encargo das propinas: em média 14.000€/ano!) vestidos com uma ridícula capa e que dão uma perspectiva muito pessoal do que é frequentar ali a universidade ao mesmo tempo que nos enchem de histórias e pilhérias sobre a vetusta instituição. Estamos a falar de uma universidade que só aceitou a inscrição de estudantes femininas em 1904 e depois de uma grande polémica, e que até até 1960 não permitia que as mesmas permanecessem depois das 6 da tarde! Parece que ainda hoje as jovens licenciadas, depois da cerimónia final de investidura, não resistem a vir fazer a versão irlandesa do nosso manguito frente ao busto do reitor que se opôs à entrada das mulheres! Os católicos também só foram admitidos em 1970 mas aqui era a Igreja que impedia a sua frequência neste antro de perdição. Enfim, uma visita bem humorada!
Na Old Library está depositado o famoso Book of Kells, o tesouro irlandês mais precioso. É um manuscrito medieval com quase 1200 anos (seculo IX) e repleto de extraordinárias iluminuras e ilustrações riquíssimas. Apesar da importância do objecto, percebe-se mal o que leva uma multidão a formar filas intermináveis para poder espreitar um livro, encerrado numa mesa rectangular de 2 por 3 metros, com vitrina à prova de bala, e do qual só se vislumbram as duas paginas que estão abertas.
Presumo que todos os dias eles virarão as páginas mas não repeti a visita no dia seguinte para verificar. Percebe-se bem, contudo, o extremo cuidado com o manuscrito. Contou o nosso garboso guia (da foto) que da ultima vez que foi permitido o seu manuseamento por um visitante ilustre, a rainha Vitória, pensando fazer uma deferência especial aos estarrecidos irlandeses, achou por bem acrescentar-lhe um autógrafo real, o que levou a que, muitos anos depois. quando a rainha Isabel II repetiu a vista já só lhe permitiram vê-lo com o vidro de permeio. Gato escaldado...! Bem mais interessante foi percorrer a Long Room da Old Library com os espectaculares 64 m de comprimento, dois andares, repleta com os seus 200.000 velhos tomos criteriosamente arrumados não por autor ou temática como seria normal mas... por tamanho dos volumes! Mais uma originalidade irlandesa.
Dublin tem muitos outros edifícios de interesse, como é o caso do Dublin Castle que não é um castelo mas um palácio do seculo XVII à moda de Versalhes, embora construído no local onde existiu o primitivo castelo, e as duas catedrais, a Christ Church (sec. XII), sede da igreja irlandesa, o ramo local do anglicanismo e a a St. Patrick Cathedral, (sec. XII, também), de culto católico. Impressionantes as duas. Não dispusemos de tempo para visitar o National Museum e a National Gallery que apesar de nos terem sido fortemente recomendadas ficaram para outra ocasião, já que tenho sempre alguma resistência em passar horas preciosas encerrado num museu quando se visita uma cidade pela primeira vez e há tanto para descobrir lá fora.
É, claro, o caso da zona do famoso Temple Bar. Trata-se de um quarteirão, encostado ao Liffey, composto por uma meia dúzia de ruas estreitas e empedradas, repleto de bares, restaurantes, casas de espectáculo, lojas, artesãos e mercados. É o centro da vida nocturna e da animação diária, está tomado por milhares de turistas mas não deixa de ter um encanto muito especial. Todos os bares têm musica ao vivo, quase sempre tradicional, mas também se pode ouvir jazz e outras músicas alternativas. Para além da música dentro dos pubs, sempre a abarrotar, podem ouvir-se performances na rua, há esplanadas para sentar, para beber um copo, para comer, há lojas convencionais e outras que são muito originais. É fácil sentirmo-nos bem em Temple Bar até porque, apesar da multidão, é sempre possível, com alguns minutos de paciência, encontrar um lugar à frente dos músicos, enquanto se bebe uma pint de Guinness ou se janta. Nos bares, não se exige consumo mínimo e ninguém repara se só pedimos uma cerveja, se encomendamos uma copiosa refeição ou se estamos só ali a ver o espectáculo.
Não quisemos deixar Dublin sem deixar de visitar a velha prisão de Kilmainham Gaol e não nos arrependemos pois foi uma dos momentos mais impressivos da nossa viagem. Como este ano se comemora o centenário da revolta da Páscoa de 1916, toda a Dublin está cheia cartazes, exposições evocativas e memórias do sangrento levantamento nacionalista. Mas em nenhum lado se apercebe melhor da história trágica do país e do seu povo que ali, na velha cadeia construída no final do século XVIII e encerrada definitivamente em 1924 com a libertação do ultimo prisioneiro, Eamon de Valera, que viria depois a ser Presidente da República. A visita tem que ser marcada com alguns dias de antecedência através da internet mas o sistema funciona muito bem e foi fácil consegui-las. Foi para aqui que foram levados os lideres do Dublin Easter Rising e foi aqui que foram fuzilados poucos dias depois. Numa visita guiada pelas celas, corredores escuros e pátios claustrofóbicos, carregada de silêncios e palavras contidas, o nosso jovem guia martelava com um ritmo lento e cadenciado algumas das terríveis histórias desses prisioneiros e de muitos outros de delito comum que ali padeceram as agruras do cárcere ou da execução. Choca-nos a evocação do do jovem Joseph Plunket que casou na capela da prisão poucas horas do seu fuzilamento ou de James Connolly que demasiado ferido para se conseguir por de pé , foi amarrado a uma cadeira e assim baleado. Ou ainda a história dos garotos com fome que ali estiveram detidos por 20, 30 ou 40 dias por roubarem um pão, uma cenoura, umas poucas batatas. O edifício foi considerado monumento nacional e totalmente recuperado por subscrição pública e trabalho voluntário o que mostra bem a força do nacionalismo irlandês e a forma como a liberdade é ali valorizada. Uma cuidada e muito instrutiva exposição ajuda a compreender o contexto das varias revoltas nacionalistas pre-independência em 1921 e também da dolorosa guerra civil que se seguiu 1922-1924.
(A seguir: Cerveja a paixão nacional dos irlandeses)
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