sábado, 9 de abril de 2016

Uma aldeia francesa



Confesso-me fascinado pela série que tem estado a passar na RTP 2 Uma Aldeia Francesa (Un Village Français, no original). Tem o grave defeito de ser diária (de segunda a sexta), o que exige alguma disciplina e e ampla disponibilidade nem sempre compatíveis com as agendas carregadas, embora as possibilidades das gravações na box possam tornear em grande parte essas dificuldades.

É uma série de época, com uma notável reconstituição de decors e ambientes, cuja acção decorre durante a 2ª guerra mundial, numa aldeia perdida junto à linha de demarcação que separa a França ocupada da zona administrada pelo governo fantoche de Vichy. A série começa mesmo com a chegada do exército alemão e o inicio da ocupação e descreve a forma como isso alterou de forma dramática a vida daquelas pessoas comuns e (aparentemente) sem história. Esta identificação do espectador com aquelas personagens é um dos elementos chave do sucesso da série porque ao vermos aquelas pessoas comportarem-se e reagirem perante acontecimentos inesperados e situações que não controlam, ficamos com a impressão que poderíamos ser nós, tudo aquilo bem poderia acontecer connosco e ninguém sabe na verdade como se comportaria tanto perante as adversidades como com as oportunidades . Aqui não há propriamente heróis impolutos nem vilões definitivos, cada ser humano é um sujeito complexo, contraditório, capaz do oportunismo mais descarado ao gesto mais inesperado e altruísta. Até entre a tropa ocupante há lugar para o soldado gentil, lado a lado com a soldadesca  implacável.

Mas é na ambiguidade da "colaboração" que Uma Aldeia Francesa melhor se revela. É este um tema sempre controverso, uma velha ferida, ainda em aberto, na sociedade francesa que a série escalpeliza com acutilância, bastante ironia e até algum humor. Se é verdade que uma certa França profunda, arcaica e rural se revê naturalmente nos princípios ultra conservadores que o governo de Pétain representa, aqui e ali vão surgindo sinais de incomodidade e de distanciamento. Mas a verdade é que todos, ou quase todos, acabam, de uma forma ou de outra, por "colaborar" com o ocupante. Seja por um básico instinto de sobrevivência, seja por desprezível cupidez, oportunismo ou por mera tática de resistência, a colaboração é o eixo central da narrativa em volta do qual tudo gira. Esta duplicidade comportamental, patente tanto na vida pessoal, com o habitual cortejo de adultérios e exemplos de uma moral sexual bastante particular, como nas atitudes de cidadania perante o ocupante, tornam cada personagem num ser enigmático e imprevisível. Curiosamente, só a personagem de Marcel, o comunista, parece  fugir a este registo de ambiguidade mas a sua irredutível intransigência acaba por o tornar mais preso a contradições e incoerências, numa época em que os seus camaradas ainda desconfiavam da resistência dos exilados de Londres e tinham compreensão pelo sinistro pacto germano-soviético.

Uma Aldeia Francesa é afinal um microcosmo revelador da nossa humanidade, com todas as nossas glórias e misérias e por isso é extremamente actual e questiona-nos nas nossas certezas e valores. Boa televisão!

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